A missão segundo o modelo de Jesus Cristo
O modelo missionário a ser seguido pela Igreja é o praticado pelo nosso Senhor Jesus Cristo. As características básicas da missão de Jesus Cristo foram:(1) Enviado pelo Pai, como Seu representante na terra, a fim de revelar a Sua graça e demonstrar a Sua justiça (Jo 1,12-14; Rm 3,2126), Jesus viveu praticando a vontade do Pai, sendo fiel a Ele e rejeitando o caminho de Satanás (Mt 4,1-11); (2) Ungido, guiado e dirigido pelo Espírito Santo (Lc 4,18-21), de quem recebia a energia e o poder para servir ao Pai e à humanidade, e em cujo poder foi ressurreto (Rm 1,1-4); e (3) Encarnado como ser humano, dentro da cultura e sociedade judaicas (Jo 1,1-11), e assumindo a condição de escravo, sendo obediente até a morte e morte de cruz (Fp 2,5-11), Jesus tornou-se plenamente solidário com a humanidade em sua necessidade e sofrimento, sem, porém, pecar (Hb 2,14-18).
A pós-modernidade como a face “deste presente século” (Rm 12,1-2)
Assim como Jesus, enviado pelo Pai e ungido pelo Espírito, encarnou-se na sociedade e cultura de seu tempo, também a Igreja deve se encarnar na sociedade e cultura de seu próprio tempo. A cultura de nosso tempo é a forma de vida chamada de “pós-modernidade”. Como a cultura no tempo de Jesus, ela oferece oportunidades e desafios para a missão da Igreja. Seguindo o exemplo de Jesus, a Igreja deve se encarnar de forma crítica na pós-modernidade. As duas características básicas da encarnação missionária são: (a) o discernimento do Espírito (Cl 1,9-11), a fim de podermos distinguir entre o pecado e a justiça, o certo e o errado, o bem e o mal, a verdade e o erro em nossa cultura e sociedade; e (b) a compaixão (Mc 6,34), para podermos anunciar o Evangelho da salvação às pessoas que estão escravizados pelos poderes do pecado e da morte, e que caminham cegas, como ovelhas perdidas, sem pastor.
1. O desafio da fidelidade
A religiosidade peregrina e perambulante
A forma predominante da religiosidade pós-moderna é a da peregrinação. A religião é vista pelas pessoas como um meio para conseguir resolver os problemas que a ciência, a técnica e a política não conseguem resolver. As necessidades de saúde física, saúde emocional, amor e companheirismo não são supridas adequadamente na sociedade pós-moderna. Por isso, as pessoas buscam religiões que satisfaçam essas necessidades. Entretanto, como somente Jesus Cristo pode satisfazer plenamente as necessidades humanas – e transformar o nosso ser interior – a pessoa sedenta busca resposta nas várias religiões que se apresentam no “mercado de bens simbólicos” – dá uma passeadinha pelo caminho de São Tiago, toma um chazinho do Santo Daime, vai pedir a bênção da Mãe Tereza, ou do Pai João, entrega um dinheirinho na Universal, pega uma águinha benta na Catedral … A religiosidade pós-moderna não sabe o que é fidelidade, a não ser a fidelidade ao interesse próprio, que pode ser chamada de egoísmo. E até no meio evangélico já se começa a ver a penetração dessa perambulação pós-moderna, com os crentes assistindo a todos os programas de TV e rádio, ouvindo todos os CDs que consegue comprar, frequentando todas as reuniões de diferentes igrejas, etc. Onde houver uma oferta de bênção, aí também o crente estará. A fidelidade a Deus começa em casa. Para podermos dar testemunho aos peregrinos pós-modernos, precisamos aprender a fidelidade, seguindo o exemplo de Jesus!
A pregação do Deus dinheiro e a vida sacrificial
A outra face da religiosidade pós-moderna não tem “cara” de religião. Por isso mesmo, é muito mais perigosa, porque muitos não a reconhecem. A religiosidade pós-moderna tem como seu grande “deus” o dinheiro – seja na forma de Capital, seja na forma de lucro, seja na forma de desejo dele – que cobra uma séria e rigorosa disciplina sacrificial de vida. Para que as economias funcionem bem, os países exigem “sacrifícios” de seus cidadãos (desemprego, apertar os cintos, corte de gastos com saúde, educação, transporte, moradia; privatizações sem fim …), e na expectativa de ter dinheiro para poder consumir, as pessoas se submetem ao estilo de vida sacrificial exigido pelo Mercado. Nesse estilo de vida sacrificial, a compaixão e a solidariedade não têm lugar. É cada um por si, e o “deus” dinheiro por todos. Só que o deus dinheiro e seu profeta, o mercado, são deuses rigorosos que não conhecem a compaixão. Não aceitam as pessoas que não conseguem competir e vencer. Eles as excluem – do acesso à saúde, à moradia, à vida, à dignidade, e exigem total fidelidade – mesmo excluídos, têm de aceitar a sua condição e reconhecer o seu “pecado capital”. Quem não consegue “vencer” é sacrificado no altar do lucro, da produtividade e da qualidade total. Lembremo-nos do que ensinava Jesus: “ninguém pode servir a dois senhores …” (Mt 6,24)
A fidelidade ao verdadeiro Deus e a Seu povo
O primeiro grande desafio missionário da pós-modernidade é o da fidelidade ao Deus verdadeiro. Só pode fazer missão o povo que anda na presença de Deus e procura fazer a sua vontade. Nas palavras de Jesus, “buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33). Somente quando o povo de Deus se submete ao reinado de Deus e tem a Sua justiça como critério de vida e missão, é que pode fazer frente ao caráter peregrino e sacrificial da religiosidade pós-moderna. Neste tempo em que as informações voam distâncias e tempo através dos satélites e televisões, rádios, Internet … Neste tempo em que temos um volume de informações imenso, mas pouco sabemos realmente de importante, é fundamental a fidelidade ao verdadeiro Deus. Doutra forma, nossa mensagem cairá no vazio do excesso de informações. As pessoas só crerão no Deus verdadeiro se virem a Sua verdade amorosa, justa e compassiva em ação na vida dos filhos e filhas de Deus. Como diz uma canção brasileira a respeito do culto: “E ao sairmos daqui, que poderemos fazer? Deixar que o mundo veja em nós a Cristo e o Seu poder.” Para fazer missão na pós-modernidade, é preciso que nossa vida seja missionária, que nosso comportamento seja semelhante ao de Jesus Cristo, que recusou todas as tentações satânicas, todas as tentações de dinheiro, prestígio, consumo e poder, e foi fiel ao envio do Pai, e submisso à direção do Espírito Santo. Como Jesus, precisamos conhecer a Palavra de Deus para vencer as tentações (Mt 4,1-11).
2- O desafio do discernimento
A vida não refletida, apenas sentida
Uma das características fundamentais da chamada pós-modernidade é o abandono da reflexão crítica racional. Reconhecendo a incapacidade da razão resolver todos os problemas humanos, as pessoas que aderem ao novo modo de ser pós-moderno preferem levar a vida a partir dos sentimentos e desejos, e não da reflexão, ou, em linguagem bíblica, do discernimento. Sentir é mais importante do que saber, e sentir-se bem é o que realmente importa para o indivíduo pós-moderno. Essa ausência de reflexão é conseqüência da negação das utopias (propostas de transformação social e econômica) e da afirmação do “fim da história” (a crença de que o estágio atual do capitalismo neo-liberal é a forma mais completa da evolução humana). Se nada há adiante de nós, se já alcançamos a forma mais evoluída possível de organização social, econômica e política, para que refletir criticamente sobre a realidade? Basta viver, e curtir a vida. Basta sentir e deixar-se levar pelos sentimentos. Para que pensar, se os governantes irão fazer o que for necessário para a vida melhorar? Para que pensar, se o mercado “livre” é capaz de organizar a atividade das pessoas, distribuir oportunidades e castigos? Vamos aproveitar a vida! Ou, nas palavras de um antigo filósofo, “comamos e bebamos porque amanhã morreremos”!
Precisamos de uma renovação de nossa vida litúrgica, que está cedendo ao irracionalismo pós-moderno. Como conseqüência do irracionalismo, na vida da igreja, nossos cultos têm cada vez menos conteúdo e cada vez mais emoção. Cada vez menos Palavra de Deus, e cada vez mais desejos e sonhos humanos. Cada vez procuramos menos agradar a Deus, e mais a nós mesmos – afinal, “o culto não é para a gente se sentir bem?” Liturgias irracionais não ajudam a Igreja a enfrentar a pós-modernidade. A rejeição da razão não é a solução para os males da racionalidade moderna, voltada inteiramente para a técnica e a eficácia. Ao invés de vivermos levados pelos sentimentos, precisamos de uma racionalidade ampla, humana, plena. Precisamos de uma “razão comunicativa”, que, ao invés de se centrar na técnica e eficácia, tenha seu eixo na relação pessoal e social com o “outro” (próximo, na linguagem bíblica). Como cristãos, em particular, precisamos de uma inteligência crítica, que nos torne capazes de “dar a razão da nossa esperança a quem nos perguntar” (I Pedro 3,15).
A vida sem integridade, apenas com interesses e desejos
Uma vida vivida em função dos sentimentos, além de negar a capacidade humana de crítica e pensamento construtivo, também nos torna fáceis presas de nossos interesses e desejos pecaminosos. Vários são os sintomas da crise da razão e do reinado do sentimentalismo. Por exemplo: a desestruturação da vida familiar, em função de uma visão meramente romântica do amor, mediante a qual “João ama Maria, que gosta de José, que ama Antônia, que prefere Pedro, mas está triste porque ele ama José …”. Outra causa da desestruturação familiar é o afastamento cada vez maior entre pais e filhos, a falta de comunicação eficaz entre as gerações dentro de casa, a tentativa de cada lado impor a sua vontade e seus desejos. Além da desestruturação da vida familiar, outro exemplo da crise da razão é o abandono da integridade como padrão ético de comportamento. Tudo vale para a realização dos desejos pessoais – uma mentirinha, um jeitinho, uma fezinha… A palavra não precisa ser cumprida, os compromissos não são levados a sério, os relacionamentos pessoais servem apenas enquanto se “leva vantagem”; entre os adolescentes e jovens a moda é “ficar”, pois quem “fica” não se compromete com a outra pessoa. Não há integridade nos negócios, nas relações pessoais, na política, no exercício do poder público.
Neste sentido, a pós-modernidade não é tão “pós” assim, pois a falta de integridade é uma característica da pecaminosidade humana. Todavia, em nossos dias, como nos tempos de Paulo, a ausência de integridade tem se tornado o ponto mais crítico da ética individual e social (cp. Rm 1,28-33). O mais preocupante, porém, é a penetração da falta de integridade nos meios evangélicos! Líderes internacionais de missões e pastoral, como Frank Dietz e Warren Wiersbe têm escrito livros defendendo a necessidade da volta da integridade à vida cristã, particularmente entre os líderes do povo de Deus. Como poderá Deus nos escutar se não vivemos de forma íntegra a Sua vontade? (cf. Amós 5,21a-24). Como anunciar o Deus da justiça sem integridade? Como crerão se não virem em nós a verdade de Deus em ação?
A vida cheia do Espírito Santo, refletindo e crescendo no saber de Deus
Contra o irracionalismo da pós-modernidade, a resposta bíblica é a vida cheia do Espírito Santo. Em sua exortação aos efésios, Paulo disse: “Sede verdadeiramente atentos a vosso modo de viver: não vos mostreis insensatos (sem juízo, sem razão), sede, antes, pessoas sensatas, que põem a render o tempo presente, pois os dias são maus. Não sejais portanto sem juízo, mas compreendei bem qual é a vontade do Senhor … sede cheios do Espírito Santo” (Ef 5,15-18). A exortação paulina é muito apropriada para os nossos dias. Precisamos de uma renovação da vida intelectual da Igreja. Precisamos de que o povo de Deus assuma a sua função de teólogos e teólogas! Pois é isso que Paulo está pedindo de nós. Estar atentos a nosso modo de viver, sermos sensatos, significa refletirmos sobre a nossa realidade à luz da Palavra de Deus, movidos pelo Espírito. E a teologia é exatamente isso! Na modernidade, a teologia era rejeitada em troca da “prática”, na pós-modernidade ela é rejeitada em troca da “beleza”. Mas nós precisamos urgentemente dela. De uma teologia prática, bela, racional e cheia do Espírito Santo. Precisamos de uma teologia baseada no discernimento do Espírito, que nos faça andar de modo digno do Senhor, que nos faça crescer no conhecimento de Deus, que nos faça transbordar em boas obras missionárias (cf. Cl 1,9-11).
Nossas igrejas precisam redescobrir o valor da reflexão séria e profunda sobre a vida baseada na Palavra de Deus. Precisamos de pastores que devolvam ao púlpito o seu vigor teológico, precisamos de mestres que devolvam à educação cristã seu vigor pedagógico e reflexivo. Precisamos de renovação de nossa vida eclesial, de nossos programas e encontros, de forma que a reflexão ocupe um lugar tão importante quanto a comunhão, a oração e a adoração a Deus. A renovação da vida dos “leigos” é fundamental para que a Igreja possa realizar sua missão no mundo pós-moderno. O primeiro grande desafio para o laicato pós-moderno é a vida de discernimento. Precisamos de um povo cheio do Espírito Santo, capaz de refletir sobre a vida sensatamente, capaz de interpretar a Bíblia fielmente, capaz de anunciar a Palavra inteligentemente!
Julio Paulo Tavares Zabatiero – Doutor em Teologia – Escola Superior de Teologia (Sâo Leopoldo; Professor nas áreas de Bíblia e Teologia Pública na FTSA;Pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
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