A Escritura repetidas vezes afirma que a humanidade vive debaixo da escravidão, por exemplo: “E nós, igualmente, quando éramos crianças sujeitas aos elementos do mundo, éramos escravos” (Gálatas 4,3).
“outrora, quando não conhecíeis a Deus, estáveis escravizados a deuses que, por sua própria natureza, não o são…” (Gálatas 4,8);
“Mas a Escritura sujeitou tudo ao pecado num cativeiro comum, a fim de que, pela fé de Jesus Cristo, a promessa fosse cumprida para os que creem. Antes da chegada da fé, nós éramos mantidos em cativeiro, sob a lei, em vista da fé que devia ser revelada” (Gálatas 3,22s).
A condição humana de escravidão é de tal natureza que não nenhum ser humano pode se auto-libertar, precisando, portanto, de um Libertador ou Redentor – que nos outorgue o resgate, a alforria, a própria liberdade. Jesus Cristo, o Filho de Deus, eternamente entregue em nosso benefício (Efésios 1,4; 1 Pedro 1,18-20), assumiu a condição humana a fim de nos libertar (João 1,1-18; Filipenses 2,5-11) e nos fazer retornar à comunhão e submissão ao Pai Eterno. Foi da vontade e decisão de Deus que o Libertador vivesse uma vida plenamente humana e consagrada ao Pai (Hebreus 2,5 18), de forma a revelar não só o amor do Pai, como também a plena humanidade desejada pelo Criador.
Assim, a redenção é conferida à humanidade mediante a integralidade da vida, morte e ressurreição de Cristo. Devido ao hábito de falarmos da morte salvífica de Jesus Cristo na cruz, comumente negligenciamos o caráter salvífico de toda a carreira terrena de Jesus. Nesta reflexão, gostaria, portanto, de apontar brevemente os aspectos salvíficos principais da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
1. Jesus Cristo liberta mediante a sua solidariedade com a humanidade escravizada,
Assumindo a nossa condição de escravos – Gálatas 4,4-7; Filipenses 2,5ss. Jesus, nascido de mulher e sujeito à Lei é quem nos pode libertar. Jesus é o Libertador mediante a sua solidariedade conosco na escravidão que caracteriza a nossa humanidade. Sendo o Filho de Deus, Jesus assume solidariamente a nossa escravidão para que possamos, nEle, sermos tornados filhos adotivos de Deus – deixamos de ser escravos e nos tornamos filhos e herdeiros de Deus – herdamos a vida!
De forma semelhante à perspectiva paulina de solidariedade, encontramos no Evangelho de Marcos a apresentação da solidariedade de Jesus com as pessoas impuras. O batismo é o primeiro sinal concreto dessa solidariedade, pois Jesus não tinha pecados de que se purificar, mas se deixa batizar representativamente pelos impuros e pecadores. O início de seu ministério na Galileia também é expressão da solidariedade com pessoas impuras, uma vez que a Galileia era região desprezada pelo judaísmo oficial, conforme atesta o próprio ditado popular “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?”. Os sinais realizados por Jesus – curas, milagres e exorcismos – podem ser vistos, também, como expressões de sua solidariedade com as pessoas impuras.
Em especial o exorcismo é manifestação dessa solidariedade, pois, na linguagem dos Evangelhos, Jesus liberta as pessoas possessas por “espíritos impuros”. A comunhão de mesa com publicanos e pecadores é outra das expressões da solidariedade de Jesus com pessoas impuras, e Lhe rendeu polêmicas severas com as autoridades judaicas. Por fim, devemos destacar as ocasiões em que Jesus ou seus discípulos quebravam a “lei” conforme interpretada pelos fariseus de seu tempo. Os relatos dos atos de Jesus em Marcos 1,16-45 e o conjunto de controvérsias de Jesus com o judaísmo oficial em Marcos 2,1-3,6 são testemunho textual suficiente para compreendermos a solidariedade de Jesus com pessoas impuras, e com os pecadores em geral.
2. Jesus Cristo nos liberta mediante a sua fidelidade (fé) a Deus – Gálatas 2,16 (cp. Gálatas 3,22; Romanos 3,22. 26):
“Sabemos entretanto que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas somente pela fé em Cristo, a fim de sermos justificados pela fé de Cristo e não pelas obras da Lei, porque pelas obras da lei ninguém será justificado”. A tradução acima destaca a preposição de que, normalmente, é traduzida por “em”, o que torna o versículo redundante e pode conduzir a uma interpretação da fé em que esta se torna uma nova obra meritória para ganhar a salvação.
A fé é nossa resposta à oferta graciosa da salvação por Deus, mas não é a base de nossa salvação. A base de nossa resposta é a fidelidade de Jesus Cristo ao Pai. O fundamento veterotestamentário desta afirmação paulina é duplo: (1) Paulo interpreta a Lei como posterior à promessa de Deus à Abraão de que nele seriam abençoadas todas as famílias da terra – Gálatas 3,17s; (2) Paulo interpreta a vida justa – livre – como a vida do fiel a Deus, seguindo Habacuque 2,4 – no idioma hebraico, o termo que traduzimos por fé denota, igualmente fé e fidelidade.
Em que consistiu a fidelidade (fé) de Cristo, mediante a qual somos justificados (libertados)? Em sua completa e plena submissão à missão que lhe foi confiada pelo
Pai que o enviou (Gálatas 4,4ss). O fundamento de nossa liberdade é a fidelidade de Cristo, e isto é determinante para uma correta compreensão de nossa libertação e justificação. Corremos o risco de confundir a fé em Cristo com o fundamento da salvação – a fé é o meio pelo qual recebemos a salvação. O fundamento da libertação é a fidelidade de Cristo a Deus o Pai, que torna presente na história (vindo à plenitude dos tempos), a graça libertadora de Deus, agora disponível a todos os povos.
3. Jesus é o nosso Libertador porque Ele assume a nossa condição de malditos sob a Lei e morre representativamente por toda a humanidade (Gálatas 3,12-14).
O domínio da Lei escraviza porque obriga a pessoa a guardar todas as suas prescrições e determinações, o que é impossível à humanidade carnal. Incapazes de obedecer todas as prescrições da Lei, a humanidade recai sob a maldição da Lei. Em sua morte na Cruz, Jesus torna-se o maldito por nós, libertando-nos da maldição da Lei: a morte e morte de cruz. Mediante a Sua morte na cruz, Jesus assume a maldição da lei sobre Si mesmo, e torna, assim, aberto o caminho da promessa, da bênção abraâmica, a todas as nações. Doravante, o acesso à promessa é efetuado mediante a fé, pela qual recebemos o Espírito Santo prometido (cf. Gálatas 3,1-5).
A polêmica paulina contra a Lei é ampla, e nem sempre bem compreendida. Parece-me que o ponto principal dessa polêmica é que a Lei, embora inspirada por Deus, não serve como base para a salvação. A Lei não pode ocupar o lugar da graça, pois se assim o fizesse, a salvação teria como base o esforço humano e não a dádiva divina. Podemos pensar na Lei como um mapa para conhecermos a vontade de Deus, mas não como o caminho no qual realizamos nossa jornada. Jesus é o caminho, a Lei é apenas um mapa para nos ajudar a encontrar Jesus Cristo, o único Senhor e Salvador da humanidade e de toda a criação divina.
4. Jesus Cristo liberta a humanidade mediante a sua vida livremente entregue, abrindo para nós o acesso a uma vida de plena liberdade:
“É para sermos verdadeiramente livres que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos deixeis sujeitar de novo ao jugo da escravidão” (Gálatas 5,1-2). A morte de Jesus Cristo é a coroação de sua vida e ministério terrenos. Ele morreu a morte do fiel a Deus, do solidário com impuros e pecadores, do rebelde aos reinos humanos que prometem salvação e usurpam o lugar de Deus. Na morte, e morte de Cruz, a culpa e a condenação da humanidade foram também crucificadas, e pagas todas as dívidas que contra nós pesam. Cruz é plena libertação, pois é a expressão máxima da solidariedade de Jesus com a humanidade pecadora. Nela, “aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado” (II Co 5,21) e o fez em nosso benefício!
A natureza humana é de tal modo frágil que, no caminho árido da liberdade (cp. O período de peregrinação dos hebreus no deserto após o êxodo), as tentações para voltar ao seguro e confortável caminho da escravidão são poderosamente sedutoras – seja a escravidão da Lei, seja a escravidão aos deuses que não o são de fato! Libertados por Cristo, podemos viver em plena liberdade da fé. E a liberdade dos que creem é a liberdade para amar, pois a fé “age pelo amor” (Gálatas 5,6). Ainda por causa da nossa condição carnal, é necessária sempre a exortação: “Vós, irmãos, é para a liberdade que fostes chamados. Contanto, que esta liberdade não dê nenhuma oportunidade à carne! Mas pelo amor estejais a serviço uns dos outros. Pois toda a lei encontra o seu cumprimento nesta única palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo.” (Gálatas 5,12-13) Livres da lei e dos ídolos, podemos viver na liberdade do amor – que é o fruto do Espírito da promessa, e o verdadeiro cumprimento da Lei.
5. Jesus Cristo liberta mediante a sua ressurreição dentre os mortos (Romanos 4,23-25).
A ressurreição é o selo divino sobre a vida e morte do Filho, garantindo para a criação a sua filiação divina e sua realidade salvífica em nosso favor (Romanos 1,1-4). A ressurreição de Jesus é a ressurreição do encarnado, vivo, e crucificado. Evento histórico-escatológico, a ressurreição dá sentido definitivo e definidor à história da criação e das relações de Deus com sua criação. “Da história de Cristo resultam os seguintes horizontes de alvo e sentido:
1ºalvo: fé justificadora (cf. Romanos 4,25);
2º alvo: domínio sobre mortos e vivos (cf. Romanos 14,9);
3º alvo: superação da morte e nova criação (cf. I Co 15,25-28);
4º alvo: Glorificação de Deus por meio de um mundo redimido (cf. Filipenses 2,9-11).
O objetivo imediato é a justificação dos homens, mas o objetivo superior é a justificação de Deus; o objetivo comum consiste na justificação recíproca de Deus e dos homens e em sua vida comum em justiça. Com o ressuscitamento do Cristo assassinado por crucificação por Deus começa um processo universal de teodiceia que pode ser consumado pelo ressuscitamento escatológico de todos os mortos e pela destruição do poder da morte e, portanto, pela nova criação de todas as coisas. Então esse processo de teodiceia se transforma em doxologia cósmica universal.” (MOLTMANN, J. O caminho de Jesus Cristo. Cristologia em dimensões messiânicas, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 250.
Minha intenção, com esta breve reflexão sobre a vida de Jesus Cristo como base de nossa salvação, é apenas a de destacar a importância e a necessidade de ampliarmos nossa visão e nossa reflexão a respeito da salvação. Uma doutrina da salvação baseada apenas na “cruz” de Cristo corre o risco de tornar a fé e a vida cristãs apenas questões de assentimento doutrinário e da vida privada, da vida do indivíduo com Deus.
A fé cristã e a vida cristã afetam a totalidade de nossa vida, pessoal, social, econômica, cultural, política. Ampliando a nossa visão, crescerá o nosso discernimento. Maior discernimento, maior será a eficácia de nosso testemunho pessoal e ministerial. Maior será, então, a glorificação de Deus através de nossas vidas!
Julio Paulo Tavares Zabatiero – Doutor em Teologia – Escola Superior de Teologia (Sâo Leopoldo, Professor nas áreas de Bíblia e Teologia Pública na FTSA, Pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil