*Texto adaptado do original: PEREIRA, V. C. M.; BARRO, A.C.; BARRO, ODS 10: redução das desigualdades. In: ZABATIERO, J.P.T.; SILVA, W.P. Porque Deus amou o mundo: igreja e ODS. Ed. Descoberta. Londrina, 2018.
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As facetas da desigualdade
A prática da Justiça Social na igreja ou pela igreja necessita, indiscutivelmente, ter como objetivo o resgate da dignidade e da igualdade entre e para todos os seres humanos. Quando se fala sobre as lutas pela redução das desigualdades, há de se pensar desde uma perspectiva macro e multidimensional pois há diversos tipos de desigualdades, sendo que, as mais comuns são as desigualdades econômicas e as sociais, que normalmente acontecem na relação entre duas situações ou pessoas distintas, podendo ocorrer em um mesmo espaço geográfico, como no mesmo país ou entre lugares ou regiões diferentes. As desigualdades que acontecem nas rendas financeiras, nos gêneros, nas idades, nas deficiências, na orientação sexual, na raça e na origem étnica, na religião e nas oportunidades, continuam persistindo em toda esfera terrestre, elas estão repercutidas nos países, estados, cidades, igrejas e ameaçam o desenvolvimento social e econômico a longo prazo.
Em se tratando da realidade local, pesquisas revelam que a desigualdade constitui um dos desafios mais importantes na região da América Latina e Caribe pois as cifras são dramáticas e contundentes. Uma análise da Comissão Econômica das Nações Unidas – CEPAL, para os 33 países latino-americanos e caribenhos, demonstrada no relatório intitulado La ineficiéncia de la desigualdad aponta que, embora tal região tenha alcançado o seu menor índice de concentração de renda, a mesma continua sendo a mais desigual do mundo, com um coeficiente de Gini estimado em 0,5. O coeficiente de Gini é um índice mundialmente utilizado para calcular a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usado também para qualquer distribuição, como concentração de terra, riqueza entre outras (IPECE, p. 3).A pesquisa também aponta que o Brasil tem a pior taxa regional de conclusão do Ensino Fundamental II entre população mais pobre.
Tal realidade ameaça não somente o pobre, ela afeta a sustentabilidade econômica, social, ambiental e comunitária de toda uma região, e não é para menos, 75% da população mundial pensa que a distribuição da riqueza é injusta. Quando se fala sobre distribuição da riqueza injusta, fala-se sobre pobreza, e aqui, é importante levar em consideração que há pelo menos quatro formas distintas de se interpretar o conceito de pobreza. Um texto extraído da tese de doutorado da Ana Luiza Codes (2008) intitulado: A trajetória do Pensamento científico sobre pobreza, categoriza o conceito de pobreza da seguinte forma:
- pobreza como a ideia da subsistência,
- pobreza das necessidades básicas,
- pobreza da privação relativa e
- pobreza como privação de capacitação.
Para se entender a pobreza, é preciso conceituar ou melhor, identificar que a pobreza não significa apenas escassez de renda, senão que, a privação das capacitações básicas, ou seja, a pobreza no bolso – a falta de dinheiro, é diferente da pobreza referente às necessidades básicas ou pobreza em liberdades humanas. Quando a igreja entende isso, ela então assume a verdadeira luta pela Justiça Social, uma luta que implica na luta por uma vida com mais opções, com mais possibilidades e oportunidades para todas e todos.
Embora exista forte conexão entre o conceito de pobreza e o conceito de desigualdade, pobreza e desigualdade são coisas diferentes sendo a última, a distância que separa um grupo social do outro. McKay (2002) afirma que há países onde pode existir desigualdade sem que haja pobreza e pobreza sem que haja desigualdade. Tal afirmação abre precedente para pensar que a desigualdade pode ser mais perigosa que a pobreza, embora no Brasil, tanto a pobreza quanto a desigualdade caminhem juntas.
Entender a natureza da desigualdade em suas várias dimensões é estritamente relevante, pois as pessoas que sofrem algum tipo de desigualdade nas capacidades ou nas oportunidades sem serem necessariamente pobres, podem, por exemplo, se comportar como pessoas violentas, causando a falta de paz em determinados entornos, como é o caso da Europa onde a temática da desigualdade está conectada com a crise do estado de bem-estar, crise esta que dia a dia se acentua e que se vê vinculada à violência relacionada aos imigrantes. Dentro dos países, quando acontece o recebimento de imigrantes em determinadas localidades, sejam estes em guetos ou nas comunidades diaspóricas, automaticamente se produzem processos locais de desigualdade em suas diversas facetas. Os imigrantes de hoje não são somente os imigrantes de caráter econômico, gente que sai de seu país de origem em busca de trabalho, de melhores oportunidades laborais, hoje há um novo tipo de imigração, impulsada muitas vezes por fatores religiosos e políticos, a exemplo das pessoas que tem emigrado da Síria e que não eram pobres, mas que foram obrigados a emigrar por conta de uma guerra instalada, porque seus lares foram destruídos.
A luta pela igualdade não é apenas uma luta econômica, pensar assim pode ser prejudicial pois, legitimar que o dinheiro seja a fonte privilegiada de acesso a certos bens básicos, a certas necessidades básicas é terrível, tal ideia fortalece o caminho das desigualdades sistêmicas inclusive dentro da própria igreja pois as desigualdades evidenciadas no mundo são produzidas por uma série de processos diferentes.
A igreja e a luta por uma sociedade mais justa e igualitária
A mensagem do cristianismo revoluciona os tempos e eras com a chegada de Jesus Cristo. Na revelação plena do evangelho, que é o próprio Cristo, toda as pessoas são convidadas para se assentarem com ele e dele aprender. Os que se aproximam de Cristo são as pessoas que o Apóstolo Paulo chama de nova humanidade. Em Cristo, afirma Paulo que as desigualdades foram superadas – o ser humano faz parte de uma nova criação (Gl 3:28).
A seguir será mencionada algumas ações que podem ser desenvolvidas com vistas a uma sociedade mais justa e igualitária. As sugestões não seguem ordem de prioridade e devem ser modificas conforme o contexto de cada comunidade, levando em consideração o aspecto micro onde as comunidades estão inseridas.
1- Uso dos espaços da comunidade para a educação informal: as comunidades cristãs podem promover vários tipos de educação informal para capacitar a população do bairro em que a comunidade está inserida. Uma das áreas mais importantes é a da inclusão digital que intenta garantir que as pessoas, especialmente jovens, tenham às tecnologias de informação e comunicação (TICs). Isto será possível com a criação de escolas nos espaços físicos da comunidade. Outra aprendizagem importante, especialmente às mulheres, mas não necessariamente, é a criação de espaços para o ensino de artesanatos, corte e costura, culinárias etc.
2- Conversar com mulheres e meninas e sobre mulheres e meninas: a designação atribuída às mulheres ainda acompanha a prática milenar de não permitir que as meninas tenham acesso à educação e desde cedo são impedidas de ter acesso ao saber, sendo empurradas para o trabalho convencional realizado por mulheres. É necessário que as mulheres sejam ouvidas, que seus clamores sejam escutados. As comunidades cristãs devem promover encontros onde o tema central seja o a exploração sexual das crianças e abuso da mulher. Promover pequenas conferências, grupos de apoio e trabalho, suporte e empoderamento são bons caminhos.
3- Oportunidades iguais nos locais de trabalho: mesmo nas igrejas e organizações cristãs, as mulheres e os negros não conseguem empregos em condições de igualdade com os brancos, por exemplo. Para as mulheres são atribuídos papeis tipicamente femininos, como se fossem coisas que apenas elas devem fazer, como atendente, secretária, recepcionista, zeladora etc. A mobilidade para promoções e melhores salários geralmente excluem as mulheres, negros, jovens, idosos etc. É necessário conscientização dos líderes cristãos, em primeiro lugar, e também dos líderes cristãos das empresas para que formulem políticas que contemplem as minorias.
4- Incentivar líderes políticos na criação de leis que promovam igualdade: É importante que a comunidade incentive líderes políticos na criação de leis que promovam igualdade. A comunidade deve-se reunir para discutir os problemas de desigualdade que percebem em seus lugares de convívio. Descobrir quais são os políticos de suas regiões e promover encontros com os mesmos para reivindicar soluções concretas para os problemas encontrados. Continuar cobrando dos mesmos via cartas, mídia social e, se possível, visitas aos seus gabinetes oficiais.
5- Requerer tratamentos similares aos realizados em outras partes do mundo: mesmo entendendo que estas metas têm dimensões globais, uma comunidade local pode fazer diferenças nas políticas das instituições que possuem fábricas ou filiais na cidade da região. Pode-se, por exemplo, estudar e entender como essas empresas atuam em outros países e que tipos de melhorias ou inventivos estão provendo em outros lugares e a partir deste conhecimento reivindicar que as empresas sejam socialmente responsáveis tal como em outros lugares. É sabido que os juros cobrados do Brasil são desproporcionais aos juros cobrados em outras partes do mundo.
6- Encorajar a contratação de imigrantes e estrangeiros: as comunidades cristãs podem-se envolver no processo migratório criando espaços e buscando recursos financeiros para oferecerem-se como hospedeiras de famílias em busca de refúgio. Muitos estabelecimentos comerciais estão tendo a prática de contratar imigrantes com grande sucesso de assimilação do trabalho por parte dos contratados e com simpática recepção do público que vê nessas iniciativas grande esforço tanto por parte dos empresários como dos funcionários contratados.
7- Instruir as crianças a respeito das diversidades encontradas no mundo: tanto nas comunidades cristãs, como nas escolas e nos lares, usar livros que narrem histórias de outras crianças em outras partes do mundo encorajando assim o crescimento onde o racismo e o preconceito estejam ausentes e, preparando-as para um futuro em que o respeito e amor para povos de outras etnias sejam uma realidade.
8- Promover festas étnicas com a presença de estrangeiros: com o advento do livre comércio e da educação sem fronteiras, milhares de pessoas residem em países diferentes de suas origens. Isso possibilita a interação com pessoas das mais diversas etnias. Encontros para experimentar comidas étnicas, ouvir estórias, aprender costumes culturais e sociais etc., ajudar a entender, compreender e aceitar o diferente em nosso meio.
Considerações finais
A desigualdade inevitavelmente é gerada pela opressão. Nenhum opressor é justo, quer seja uma pessoa, uma instituição ou um governo. Onde há opressão, há necessariamente injustiça. E onde ambas estão presentes fere o próprio Deus: “Pois o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito” (Êx 3:9-10). Deus não aceita e nem tolera a opressão porque ela gera desigualdades: “Por causa da opressão dos pobres e do gemido dos necessitados, eu me levantarei agora, diz o SENHOR; e porei a salvo a quem por isso suspira” (Sl 12:5).
A igreja hoje possui o desafio de discernir onde o como a desigualdade se apresenta e se esforçar permanentemente a refletir sobre a vocação do serviço dada por Deus, os cristãos e cristãs foram chamados a servir como agentes construtores de pontes para que o problema da desigualdade seja minorado e mitigado. O cristianismo revela sua autenticidade e fidelidade à Palavra de Deus quando os cristãos e suas igrejas lutam para a redução e eliminação das desigualdades. por amor a Deus e na busca prioritária de Sua justiça (Mt 6:33)!
Referências bibliográficas
CODES, A. L. M. A trajetória do pensamento científico sobre pobreza: em direção a uma visão complexa. Brasília: IPEA, 2008 (Textos para discussão nº 1332).
IPECE, Governo do Estado do Ceará. Entendendo o índice de Gini. Disponível em http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/Entendendo_Indice_GINI.pdf. Acessado em 23 JUL 2018.
McKAY, A. Defining and measuring inequality. OverseasDevelopment Institute and University of Nottingham, 2002.
ZABATIERO, J.P.T.; SILVA, W.P. Porque Deus amou o mundo: igreja e ODS. Ed. Descoberta. Londrina, 2018
[…] Leia também aqui>> JUSTIÇA SOCIAL E AS LUTAS PELA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES. Texto adaptado do original: PEREIRA, V. C. M.; BARRO, A.C.; BARRO, ODS 10: redução das desigualdades. In: ZABATIERO, J.P.T.; SILVA, W.P. Porque Deus amou o mundo: igreja e ODS. Ed. Descoberta. Londrina, 2018. […]