Katie Lutero: Primeira-dama da Reforma Protestante

Em um momento que apenas se celebra os feitos de Lutero, nas entrelinhas de suas falas há algo que não se pode esquecer, uma de suas frases mais marcantes: “se um dia escreverem a história da Reforma da Igreja, espero que o nome de Catarina apareça junto ao meu, oro por isso”.

por Vanessa Carvalho de Mello*

Como Igreja de Cristo, somos herdeiros e herdeiras da personalidade inovadora que a Reforma trouxe consigo. Catarina von Bora, a chamada primeira-dama da reforma nos ensina a perder o medo do novo e a nos animarmos para mudanças, conforme as situações e as épocas. Segura, pela sua fé, teve coragem de expor sua opinião, ser crítica e até ousada. Não hesitou em ajudar a quem precisasse e até arriscar-se quando necessário. Conta-se que ela nem sempre pôde assistir os cultos de seu marido porque estava ocupada fazendo visitas a pessoas idosas, doentes ou enlutadas. Não deixou de ser mulher, mãe, esposa, feminina, mas sempre lutou pela sua autonomia.

Em um momento que apenas se celebra os feitos de Lutero, nas entrelinhas de suas falas há algo que não se pode esquecer, uma de suas frases mais marcantes: “se um dia escreverem a história da Reforma da Igreja, espero que o nome de Catarina apareça junto ao meu, oro por isso”.

Com efeito, a obra de Lutero não seria possível sem a presença e participação marcante de sua esposa, Catarina von Bora, que, embora não tenha escrito um tratado teológico que leve sua assinatura, foi a responsável direta por diversos livros produzidos pelo marido, sendo este um dos motivos que levou o reformador a proferir a frase citada anteriormente, em reconhecimento ao papel de Catarina para a consolidação da Reforma Protestante.

Katie, como era carinhosamente chamada por Lutero, é um exemplo para todas as eras, pois, com coragem e ousadia foi capaz de proporcionar uma considerável contribuição para a construção do pensamento de Martinho Lutero.
Com apenas cinco anos de idade, em 1504, a filha de Hans von Bora e Anna von Haugwitz foi deixada em um internato por seu pai, que alegava questões familiares, não sendo então, de início, uma decisão da pequena Catarina o entregar-se à vida clerical, a exemplo de mulheres que também ingressaram em conventos em tenra idade, como a princesa inglesa Edburga, no século X, que aos três anos decidiu-se pela vida religiosa ao ter diante de si uma escolha: de um lado, artigos religiosos, e do outro, objetos seculares, optando então pela Bíblia.
Era uma prática comum da época encaminhar as filhas ao convento para servirem como “esposas devotadas de Cristo”, e na maioria das vezes, era a melhor opção que se podia fazer. A diferença na qualidade de vida e na longevidade das mulheres do convento e das “mulheres de família” era imensa. Uma madre superiora atingia a casa dos cinquenta anos enquanto, as mulheres de família sequer chegavam aos trinta. Aquelas que acabavam se casando tinham de lidar com agressões físicas e verbais, enquanto, as mulheres no convento aprendiam o latim, exercitavam as disciplinas espirituais como o jejum, estudo e oração, servindo como um preparo para o mundo exterior.
Sobre os conventos, Lutero se referia a estes como mais terríveis do que prostíbulos, numa provável alusão ao monastério de Poitiers e a revolta de suas internas com a madre superiora.

Algumas curiosidades sobre a vida de Catarina acontecem em paralelo com a de Lutero, enquanto ela entrava para o convento em 1504, Lutero começava a sua carreira religiosa um ano após. Em 1515 Lutero dá um grande passo em direção à Reforma com exposições da epístola de Paulo aos Romanos; na mesma época, Catarina oficializa seu “casamento com Cristo”, proferindo os sagrados votos do ministério.
Enquanto Lutero expunha suas ideias acerca das Escrituras Sagradas, o que passava pela cabeça de Catarina? Pois bem, Catarina e mais onze amigas estabeleciam a execução de um plano, que teve a adesão de Lutero: uma fuga em massa do convento. Não há nenhum registro histórico, nenhum diário, nenhuma anotação sobre este acontecimento, tudo o que se sabe sobre isso é que Lutero acabou recrutando um comerciante de Torgau, o senhor Leonard Koppe, que “sequestra” as doze freiras e tem a missão de transportá-las até Wittenberg.
A cena das freiras desembarcando da carroça foi descrita por um aluno de Lutero como “uma carroça cheia de virgens vestais que acabava de chegar na cidade, todas mais interessadas no casamento do que na própria vida”. A autora Ruth Tucker (2017) menciona que o termo “virgens vestais” não teria sido aplicado pela suposta beleza das moças, mas num toque de humor. Fato é que, em decorrência desta evasão, outras freiras começaram a abandonar os seus conventos.

A história das freiras que permaneceram em Wittenberg e encontraram marido continua, com exceção de Catarina, e aqui, um fato curioso se apresenta, segundo relatos históricos, havia um interesse mútuo entre Catarina von Bora e Jerônimo Baumgärtner, que regressa à sua casa com o propósito de comunicar aos seus pais suas intenções. A família, no entanto, não aceita e Jerônimo sequer volta para desfazer oficialmente o seu relacionamento com Catarina, que pede ajuda a Lutero e escreve uma carta na tentativa de obter uma resposta: “Se você quer sua Catarina von Bora, é melhor fazer alguma coisa rapidamente, antes que ela seja dada a outra pessoa que a queira”, como se a fila de pretendentes fosse assim, tão grande e o ciúme talvez o levasse a responder. Não havendo sequer uma satisfação para Catarina, surge um novo nome: o velho pastor Casper Glatz, que não a agrada. A sua coragem, entretanto, deve ser observada, pois Catarina é direta: só se casaria com Martinho Lutero.

O homem que arrumava casamento para todos os monges e freiras não era casado, tampouco considerava se casar, porém, a intimação de Catarina o fez mudar de ideia. Tucker (2017) comenta sobre os motivos que levaram o líder da Reforma a aceitar o convite de Catarina: “agradar seu pai, irritar o papa, fazer os anjos rirem, os demônios chorarem e selar seu testemunho” (p. 57).
Alguns aspectos desse casamento, que vão desde os primeiros dias juntos até o nascimento dos filhos, as viagens de Lutero para pregar, a administração e organização de Catarina com relação ao lar, o nascimento e educação dos filhos e o dom da hospitalidade, se apresentam como marcas expressivas do caráter de Catarina que, recebia muitas pessoas em sua casa, nas mais variadas situações, cuidava das necessidades de forma eficiente, sendo considerada também uma mestra de ervas, unguentos e massagens, reconhecida até por seu filho Paul, doutor em medicina, o qual afirmava que “ela era melhor do que muitos médicos de sua época”, tudo isso graças ao seu paciente mais ilustre: Martinho Lutero (TUCKER, p. 128-129).

Enquanto casal cristão e o exercício ministerial, Lutero era o discurso, Catarina o trabalho. Ela era a representação viva de Provérbios 31, uma mulher que edificava o seu lar, que tinha uma vida mais agitada, voltada ao trabalho, semelhante à Maria, irmã de Marta.
Filipe Melâncton, amigo de Lutero, aparece como uma figura importante na vida do casal: ele é quem fica responsável por trazer a notícia da morte de seu amigo à Catarina. Agora viúva, Catarina “indicou que estaria demasiadamente pobre, embora, na verdade não estivesse”, pois, se contadas as “propriedades de Lutero e a generosidade do príncipe João Frederico, dos condes de Mansfeld, e dos amigos íntimos do reformador, havia dinheiro de sobra”. Porém, na época, “os juízes do território não permitiam que viúvas herdassem propriedades”, além de nomearem tutores para os filhos menores (TUCKER, p. 189).

Sobre a morte de Catarina, os escritos relatam que ela faleceu em Torgau, na região da Saxônia, na Alemanha, em 20 de dezembro de 1552, aos 53 anos, tendo o seu funeral conduzido por Filipe Melâncton, que após a morte de Lutero é quem lhe dá suporte em muitos momentos. Como bem pontua Tucker, “os anos de viuvez de Catarina são difíceis de decifrar”, e continua: “alguns aspectos de sua vida e reações à morte do marido permanecem encobertos em mistério” (p. 194).

A vida de Catarina von Bora deve, sem sombra de dúvidas, ser devidamente lembrada durante o aniversário da Reforma, uma homenagem prestada não apenas à memória desta mulher, mas também ao seu marido, Martinho Lutero. Não se sabe ao certo, mas, quiçá o reformador, conhecendo as pessoas e o mundo, já imaginava que pouco (ou quase nada) seriam os esforços dedicados para se falar de Catarina. Talvez seja por isso que, em seus escritos, ele mencionava sua esposa e filhos a todo momento.
Por fim, enquanto herdeiros e herdeiras da personalidade inovadora que a Reforma nos trouxe, seguimos cumprindo o desejo do reformador de nos lembrarmos de Catarina por si mesma!

 

Referências bibliográficas

SCHÜSSLER FIORENZA, Elisabeth. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.

TUCKER, Ruth. Blog RuthTucker.com. Disponível em: <www.ruthtucker.com>. Acesso em: 2017 out. 2017.

 

*Vanessa Carvalho de Mello – Doutoranda em Teologia pela PUC PR (2020), mestra em Psicologia Social/Intervenção Social e Comunitária pela Universidade Pública de Málaga (2014), pós-graduada em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Londrina (2007), membra do Comitê Acadêmico da Comunidade de Estudos Teológicos Interdisciplinares (CETI) e orientadora do Programa de Mestrado em Estudos Teológicos para a Missão Integral da CETI, docente colaboradora da graduação em Ciências das Religiões da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR), docente permanente da graduação em Teologia da Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA) e pesquisadora do grupo de pesquisa “Religiosidade e Processos de Subjetivação” da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: vanessa.carvalho@ftsa.edu.br.