O papel da leitura na Reforma Protestante

por Wander de Lara Proença

A Reforma Protestante do século XVI nasceu em bancos escolares; expandiu-se a partir de leituras feitas em salas de aula; seus líderes mais conhecidos – assim como os “pré-reformadores” que os antecederam – eram professores. Países alcançados pelo movimento reformista atingiram índices de alfabetização até então nunca vistos no mundo ocidental. O acesso à leitura impulsionou de forma escalonada a impressão de livros e textos. O movimento reformista apresentou mudanças na maneira de ler, alterando o modo das pessoas pensar sua própria existência. Antes de ser professor, Matinho Lutero foi aluno; antes de ser escritor, primeiramente foi leitor: o que leu? Onde leu? Como leu? Para que leu? Que impactos teve a leitura de seus textos?

Um comparativo entre o medievo e a modernidade permite observar como o tempo processou transformações a partir do ato de ler. Na Idade Média – entre os séculos V e XV – a alfabetização era privilégio de poucos. Dois procedimentos estratégicos surgiram para a superação desse limitador: a leitura compartilhada por um leitor a muitos ouvintes; e um tipo de “leitura” feito a partir de imagens. Sobre o primeiro aspecto: nas sociedades com predominância de analfabetos, com mais ouvintes do que leitores, a leitura coletiva possibilitou que o fascínio do conhecimento fosse compartilhado, mesmo que ficasse aí exposto o poder de escolha, seleção e direcionamento do significado por aqueles que detinham tal habilidade. Em relação ao segundo aspecto, o papa Gregório Magno bem cedo já havia declarado: “as imagens são os livros dos leigos”. Em razão disso, as igrejas medievais apresentavam a Bíblia e a vida dos santos em pedra, vitral e madeira: “os ‘livros dos leigos’ eram exibidos com toda a visibilidade na fonte da cidade e na prefeitura, entalhados nas portas e pintados nas paredes das casas e dos prédios públicos” (Lindberg, 2001, p.77).

No advento do Mundo Moderno, “uma estimativa conservadora da taxa de alfabetização sugere que 5 por centro de toda a população e 30 por cento da população urbana sabia ler no começo do século 16” (Lindberg, 2001, p.50). Dois elementos iriam contribuir decisivamente para uma reversão desse quadro, tendo ambos a leitura como seu grande vetor: a imprensa e a universidade. Pelo custeio e empreendimento de reis, príncipes e mercadores ricos, foram fundadas dezenas de universidades; às vésperas da Reforma, o número de universidades europeias aumentara de 20 para 70. De igual modo, nas cidades do século XVI ampliou-se a circulação de novas ideias, potencializadas pelo surgimento da imprensa, criada por John Gutemberg, em meados do século anterior. Superada a restrição da escrita em razão do valor elevado da produção de livros pelos tipos de materiais utilizados, tanto o papiro como o pergaminho, os povos germânicos – protagonistas no cenário da Reforma – tornaram-se os mais antigos especialistas em impressão, favorecidos pelo desenvolvimento de um papel feito de polpa de linho, mais barato, introduzido pelo expedicionário Marco Polo a partir da China, em meados do século XV. Em razão disso, a partir do ano 1500 o acesso a livros passou a ser maior entre camponeses e artesãos. Pois, além de custarem relativamente barato e de serem produzidos em linguagem geralmente simples, os livros poderiam ser comprados nas feiras ou com mascates ambulantes que percorriam as aldeias (Burke, 1989).

A imprensa representaria uma revolução nos meios de comunicação, pela difusão, com rapidez, de novas ideias. Em um comparativo, enquanto as ideias reformistas de John Wyclif, nos séculos XIII e XIV, “espalharam-se com extrema lentidão por meio de cópias manuscritas, as ideias de Lutero cobriram a Europa dentro de poucos meses” (Lindberg, 2001, p.51). Por volta do final do século XV, as máquinas de impressão existiam em mais de 200 cidades grandes e médias. Um número estimado de 6 milhões de livros tinha sido impresso até então, sendo que a metade dos 30 mil títulos versavam sobre assuntos religiosos. “No período de 40 anos, entre 1460 e 1500, foram impressos mais livros do que haviam sido produzidos pelos escribas e monges durante toda a Idade Média” (Lindberg, 2001, p.51).

O movimento de reforma contribuiu diretamente para esse impulso no mercado de produção livreira. Milhares de panfletos e sermões publicados durante a Reforma foram projetados para serem lidos tanto para os iletrados quanto pelos letrados. Como acentuava Lutero, ‘a fé vem pelo ouvir’ (Romanos 10.17)” (Lindberg, 2001, p.50). O chamado Sacro Império Germânico foi à época inundado por milhares de outros escritos reformatórios, redigidos na forma de breves folhetos e panfletos. Os impressores tornaram-se ávidos por difundir toda a nova obra de Lutero. Em razão disso, somente na cidade em que se concentrou o epicentro da Reforma, Wittenberg, surgiram sete oficinas de impressão dedicadas a imprimir os escritos de Lutero e de seus colegas:

Por ocasião da morte de Lutero, em 1546, haviam aparecido mais de 3.400 edições integrais ou parciais da Bíblia em alto-alemão e cerca de 430 edições em baixo-alemão. Tomando como base de cálculo 2 mil exemplares por edição, chega-se ao resultado de que vieram a público mais de 750 mil exemplares da primeira versão e cerca de 1 milhão de exemplares ao todo (Lindberg, 2001, p.51).

A Reforma, assim, “dominou uma campanha de propaganda e um movimento de massa” (Lindberg, 2001, p.52). A tradução da Bíblia de Lutero, usada em larga escala e de contínua popularidade na Alemanha, contribuiu inclusive para a normalização da linguagem do alemão moderno. Seus escritos também chegaram clandestinamente aos mosteiros, onde freiras, driblando a vigilância e o índex da censura, como num ato herético se apropriaram pela leitura de novas visões de mundo. Catarina von Bora, uma delas, que se casaria com Lutero, seria em seguida grande articuladora do movimento reformista ao lado do marido, atuando como professora, escritora, musicista e compositora. Muitos, por meio da leitura das letras de suas canções, conheceram a liberdade e a libertação que a Reforma anunciava. Era demonstrada, assim, a irredutível liberdade dos leitores frente aos direcionamentos e controles que se pretende dar ao ato de ler: “a leitura é, por definição, rebelde, vadia […] o livro visou instaurar uma ordem […], todavia essa ordem de múltiplas fisionomias não obteve a onipotência de anular a liberdade dos leitores” (Chartier, 1997, p.7,8).

Com o movimento reformador, houve a devolução da Bíblia aos leigos, visto que sua leitura estava restrita ao clero. Sendo o conhecimento das escrituras bíblicas fundamentais para a salvação do indivíduo, houve intensa mobilização para que se criassem muitas escolas, agregadas aos templos protestantes, para que, por meio da alfabetização, todos pudessem ter acesso à leitura do texto sagrado. Literal e simbolicamente, a leitura teve assim um papel promotor de salvação.

Por fim, vale perguntar: se Lutero estivesse vivo hoje como seria a reforma da igreja? Certamente, não abriria mão deste instrumento capaz de transformar o mundo: a leitura. Não renunciaria ao princípio da leitura da Bíblia como única regra de fé e prática. Talvez precisasse escrever mais do que 95 teses; inegavelmente, além da invenção de Gutemberg, iria agora se valer da invenção de Bill Gates, usando recursos da internet e os novos suportes em que se dá o ato de ler, como as mídias digitais, por exemplo; publicaria textos; incentivaria jovens, idosos, leigos, mulheres e líderes cristãos em geral que buscassem o conhecimento, que estudassem Teologia, que frequentassem bibliotecas e que não deixassem de tê-las em casa, de modo físico ou digital; faria teologia pública ao mobilizar por meio de artigos e livros os governantes e poderes constituídos para que abrissem mais escolas, investissem mais em educação, e que ao invés de promover a liberação de armas, liberassem mais livros; seria um promotor da ecoteologia ao apregoar que árvores só fossem abatidas para produzir celulose, para se transformar em papel, para se transformar em livros, para transformar o mundo.

31 de outubro nos lembra que a mensagem que muda o mundo não mudou. Viva a Reforma. Viva a leitura.

Referências
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CHARTIER, Roger. Leitura: teoria e prática. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.
LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

 

Wander de Lara Proença – É Doutor em História e Professor na FTSA.