Por Ênio Caldeira Pinto
E, quando é lido “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, (Gn 1:26) defende-se a essência de Deus em cada elemento criado, e, para a criatura humana, esta essência caracterizou-se pela delegação de responsabilidades. Afinal, a humanidade é a cuidadora da criação de Deus!
Em contextos religiosos, é comum a afirmação Deus é criador de tudo. Inclusive, os relatos sobre a origem do universo (as cosmogonias) são tentativas de produção literária primitiva explicando como cada elemento da natureza surgiu. Para o escritor do Pentateuco, “no princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1:1) justamente discorre sobre a Natureza – daí a Teologia Sistemática introduzir o conceito da revelação natural. Portanto, o conceito de criação perpassa pelo conceito de natureza para construir o sentido de que Deus é o criador de tudo. E, quando é lido “façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, (Gn 1:26) defende-se a essência de Deus em cada elemento criado, e, para a criatura humana, esta essência caracterizou-se pela delegação de responsabilidades. Afinal, a humanidade é a cuidadora da criação de Deus!
E, partindo do efeito da palavra criadora (yehy – wayehy) quando Deus diz “Haja… e houve”, deve-se concordar que há outras dimensões da criação de Deus que não estão registradas nas narrativas da criação, mas em outros textos que confirmam essas dimensões criadas. Uma delas é a língua, ou melhor, as diferentes línguas (Gn 11:1-9). A narrativa da Torre de Babel exemplifica a criação das línguas – uma estratégia divina utilizada para espalhar as populações sobre a terra. Assim sendo, outra dimensão diz especificamente às etnias (ou grupos étnicos), isto é, agrupamento de pessoas que se distinguem por sua característica sociocultural, tais como: língua, religião e comportamento. O povo de Deus do Antigo Testamento, por exemplo, é do grupo étnico semita (filhos de Sem, Gn 11:10-32), do qual vários subgrupos foram surgindo. Um estudo linguístico aponta as diferentes línguas e povos: amorita, ugarítico, arameu, eblaíta, acádio e árabe. Foi do ugarítico que surgiram os seguintes povos: o hebreu, o moabita, o edomita, o adomita e o fenício. Portando, todos são da mesma etnia – da mesma dimensão criadora da humanidade.
Considerando o nomadismo como período histórico do desenvolvimento da humanidade primitiva, encontra-se um desafio conceitual que permite encarar as diferenças dentro de um mesmo grupo étnico. A princípio, pode-se dizer que a conquista de um território (ocupação de um espaço, de um lugar) ajuda a compreender tais diferenças. Há subgrupos que foram física e biologicamente evoluídos (transformados) e adaptados às condições do espaço. Este fenômeno é conhecido como fenotipagem e refere-se apenas à classificação das raças, tais como: cor dos olhos, cor da pele, cor do cabelo, estrutura óssea, características volitivas (intelectual), axiológicas (ética e moral) e psicológica (emocional). Atualmente, usa-se a classificação sociológica porque os critérios funcionam apenas para estudos logísticos e estrategicamente para grupos sociais (e culturais). Uma pessoa da região do Crato (Ceará, Brasil) é fisicamente diferente de uma pessoa de Pelotas (RS). Entretanto, uma é denominada nordestina e o outro sulista (gaúcho). Qualquer outra tipologia incluída acaba gerando confusão e forçosamente opções contraproducentes. Sendo assim, as raças são tipologias físicas da humanidade criada por Deus.
Deus criou o ser humano. A etnia e a raça são interdependentes, elas são definições constituintes de um mesmo conceito. Para definir o ser humano, é preciso intercambiar característica étnicas e raciais. Qualquer sobreposição de uma com a outra gera equívocos sobre a compreensão acerca do ser humano.
Surge um questionamento: a gênese é pela etnia ou pela raça? E a resposta é “Então Javé Deus modelou o homem (‘adam) com a argila do solo (‘adamah), soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivo”. Ou seja, Deus criou o ser humano. A etnia e a raça são interdependentes, elas são definições constituintes de um mesmo conceito. Para definir o ser humano, é preciso intercambiar características étnicas e raciais. Qualquer sobreposição de uma com a outra gera equívocos sobre a compreensão acerca do ser humano. Por exemplo, em Atos 6:1-7 há a informação de que as viúvas gregas estavam sendo deixadas de lado no atendimento diário, enquanto as viúvas hebraicas eram privilegiadas. Trata-se de uma pequena confusão diaconal, mas que evidenciou a discriminação racial. A pergunta a ser feita aqui é: quais as motivações são identificadas para que as viúvas hebraicas fossem atendidas e as gregas não? E a exegese responderia: a igreja se organiza e se estrutura a fim de atender integralmente todos(as) os(as) necessitados(as). “O evangelho todo para o ser humano todo” (Pacto de Lausanne). E, quando as estruturas não suportam e não atendem aos necessitados, abrem-se frestas para a discriminação.
A discriminação do ser humano por causa de sua raça é crime! Logo, é uma ofensa direta a Deus o Criador. Há os que querem defender hermenêutica e exegeticamente textos bíblicos que apoiam a discriminação. O pecado de Cam relatado em Gênesis 9:18-29 é o caso clássico para afirmar que a raça negra representou a maldição deste patriarca. Até aqui trata-se de um engano exegético gravíssimo. Pois bem, há mais heresia e apostasia na defesa desta maldição relacionada à cor da pele do que favorecer uma compreensão a partir do incesto ou do estupro do filho com o pai. As tradições teológicas jamais permitiram aproximações psicológicas para textos que narram sobre violência sexual – e, neste sentido, muitas confissões religiosas admitiram a escravidão, o espolio sexual, a mais valia das minorias e a expatriação racial porque acreditaram ser piedosos – uma tipologia farisaica contemporânea.
A discriminação racial é um obstáculo para o avanço da missão de Deus ao mundo.
Uma excelente hermenêutica para vencer a discriminação racial é aplicar o filtro paulino: “em Cristo todos somos feitos um” (Gl 3:26-28). Esta leitura permite o(a) cristão(ã) avançar em sua práxis missional. A fé em Cristo proporciona ao fiel ser cidadão(ã) dos céus, exigindo dele(a) uma compreensão multicultural. A xenofobia, ou seja, medo total pela outra cultura, um tipo de rivalidade entre os povos, pode significar a deficiência da fé em Cristo (imaturidade), ou ainda, revelar a deficiência das estruturas eclesiásticas e denominacionais. Os discriminadores raciais são apoiadores do ódio, da guerra e do extermínio de outros povos. Não há textos bíblicos que afirmam a supremacia cristã sobre os demais. Antes, tais textos ensinam sobre a submissão, o acompanhamento e atendimento cristão durante a jornada. A discriminação racial é um obstáculo para o avanço da missão de Deus ao mundo.
Várias organizações mundiais celebram no dia de hoje (21 de março) o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. Na verdade, é um tipo de celebração que deve ser entendida como ação sensibilizadora acerca dos valores de humanidade. Para o cristão, deveria ser o ato penitencial cuja liturgia expressasse o dever piedoso de amar a humanidade criada por Deus. Ou ainda, o ato de louvor, em cujo momento cada raça, povo, tribo, nação, etnia engrandece o Deus criador. E, ao celebrar este dia, cada cristão(ã) deve se oferecer integralmente como culto a Deus, isto é, alguém disposto a amar o próximo porque reconhece a imagem de Deus.
Aqui na FTSA, desde o início de fevereiro de 1994, a direção da faculdade enfatiza o ministério educativo que revela a missão a serviço do reino de Deus. Assim sendo, além do território brasileiro, a FTSA tem ampliado os horizontes da missão educacional aos outros povos. Por aqui já passaram angolas, equatorianos, peruanos, mexicanos, argentinos, moçambicanos, britânicos, chineses, portugueses, entre outros. Associado a esta ação, há ainda a ênfase de que a espiritualidade é cristocêntrica e solidária, ou seja, os alunos e docentes são desafiados a comportar-se como membros de uma mesma família cujo corpo é fortalecido pela multidiversidade racial (étnica).
Ênio Caldeira Pinto
Mestre em Teologia pelo Western Theological Seminary (EUA), Professor na FTSA
enio@ftsa.edu.br
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