Teologia e Saúde

Reflexão pelo Dia Mundial da Saúde

por Ênio Caldeira Pinto

Mais do que um bem social, a saúde (shalom) é um dos valores do reino de Deus que deve ser compreendido pelos dons de diaconia, socorro, misericórdia e compaixão. A salvação não é somente da alma, mas também do corpo e do espírito (2Ts 5:23-24).

Quando se diz que cada ser humano é parte integrante da criação significa afirmar que todos os seres são co-criaturas da imagem (tselen)e semelhança (demuth) de Deus (Gn 1:26). A sombra que cada elemento da criação projeta em solo ou superfície conserva diretrizes do quão eles podem ser análogos (quase parecidos) e alegóricos (comparados). O éden prefigura a saúde integral da criação, cuja shalom (em hebraico, substantivo masculino) afere a perfeição de cada criatura que fora formada por Deus e que assegurava a gratidão cúltica. A shalom é o dom divino de existência e essência sobre todas as criaturas, a fim de que cada um deles enverede-se pelo caminho da justiça. Na teologia da criação, o Espírito da vida (Gn 2:7, nisheshat hayim) valida o bem estar de toda a criação. Desta forma, a saúde sintetiza o estado da criatura no éden, cujas características acabam definindo o sistema funcional dos micro e macroorganismos da vida.

“A vida é o maior produto desejado pelo Absconditus, cujo resultado é vir à existência. E, sendo a manifestação do hálito divino, ela não pode ser negociada. Não há dinheiro que compre a vida, mas certamente há preços que patrocinam a morte! A fé, por exemplo, é a divulgação que a Vida tem feito em toda a história da criação. Ela é o ato profuso da salvação eterna sendo conquistado. E, neste sentido, há os que diariamente morrem porque se negam a aceitar o mistério da vida que emerge da fé. Quem vende a fé ou faz uso indevido dela criminaliza a missão dos viventes e rejeita a possibilidade da redenção integral. Por esta razão, Deus jamais é ou será negociado, pois ele é abundante vida aos que creem” (ECP, 2018).

Todavia, em Gênesis 3 ocorre a queda da humanidade e todos os demais elementos da criação são contaminados pela semente do mal (Rm 5:12-21). Neste sentido, as criaturas sofreram alteração em suas estruturas funcionais e, sem limites da projeção da vida, acabaram atacando uns aos outros. A queda desestabilizou a shalom, ao ponto de promover o vandalismo e a morte da integralidade da criatura (corpo, alma e espírito). Em linguagem contemporânea, surgiram os mal-estares, as convalescências, as enfermidades, as doenças, enfim, a morte. O homem (‘Adam), outrora formado do barro (‘Adamar), volta ao pó (‘Adamar). Ou seja, a morte exemplifica o porquê do estado físico e psíquico das criaturas estarem desorganizados. Ao promover o resgate da criação, Deus estabeleceu possibilidades de cuidado e restauração dos elementos da natureza. O cuidado de cada elemento é resultado de ações missiologicamente visionadas, planejadas e executadas.

Mais do que um bem social, a saúde (shalom) é um dos valores do reino de Deus que deve ser compreendido pelos dons de diaconia, socorro, misericórdia e compaixão. A salvação não é somente da alma, mas também do corpo e do espírito (2Ts 5:23-24). Afinal, o tema da saúde ganha espaço nas sessões de aconselhamento pastoral e nas liturgias de intercessão e clamor porque expõe a condição física e psíquica da pessoa. Esta exposição não é vexatória, nem tampouco excludente. Ela é testemunhal, pois ratifica a caminhada pela vida de fé e compromisso com o evangelho de Cristo. Neste sentido, a comunidade dos santos e fiéis é aquela que se preocupou com os fracos, os debilitados, os enfermos e os doentes.

Falando em Evangelho, ou melhor, nos evangelhos, há várias passagens que contam sobre a realização de milagres. Estes textos referem-se às therapias (do grego, therapeuō) porque explicam os casos de curas físicas. No evangelho de Marcos, por exemplo, há oito casos específicos de curas (1:29-31, a febre; 1:40-45, a lepra; 2:1-12, um paralítico; 3:1-6, um homem com paralisia na mão; 5:25-34, uma mulher que sofre de hemorragia; 7:31-37, um surdo-mudo; 8:22-25 e 10:46-52, cegos). Os outros milagres (exorcismos, fenômenos da natureza, transfiguração etc.) também refletem sobre a condição doentia dos estados físico e emocional das pessoas: perturbações, fome, incredulidade, entre outros). Portanto, a busca pela cura sinalizou e continua sinalizando o tema da saúde como hermenêutica do caminho missional da comunidade cristã.

Atualmente, há grandes demandas para a construção e criação de postos de saúde, clínicas de tratamento e hospitais. Este empreendimento força os governos a ampliarem os esforços políticos e econômicos para que a saúde volte a promover a shalom entre as pessoas. Então, como comunidade da fé as ações litúrgicas precisam ritualizar a crença pela obtenção de um mundo cujo ar seja puro, cuja água seja potável e cujos alimentos sejam nutritivos. A promoção da saúde implica a igreja pela postura profética de denúncia contra os males ao meio ambiente e, consequentemente, pelos malefícios à saúde humana. A saúde dos rios acabam favorecendo a qualidade da água que sacia nossa sede. A saúde dos animais assegura a convivência dos humanos com eles, a ponto de promover interação e terapias assistidas (equoterapia, por exemplo). E a saúde dos alimentos acondiciona nosso organismo pela ação metabólica nutritiva.

A atenção à saúde vai além dos discursos políticos, econômicos e religiosos. Ela é essencialmente social – equivale dizer que está é uma preocupação de Deus com a vida humana.

Todo dia é dia da saúde. Mas no dia 7 de abril, há um programa de conscientização sobre a importância do bem-estar sobre a vida do planeta e, diretamente, sobre a vida da humanidade. Neste dia, a reflexão é a respeito dos fatores que interferem e violentamente adoecem as pessoas: estresse, poluição sonora, depressão, suicídio, câncer, cardiopatias, epidemias, endemias e pandemias, entre outras. Entre 16 de março de 2020 a 05 de abril de 2022, contabiliza-se mais de 661 mil mortes de brasileiros causadas pela pandemia do Coronavírus Covid19. A atenção à saúde vai além dos discursos políticos, econômicos e religiosos. Ela é essencialmente social – equivale dizer que está é uma preocupação de Deus com a vida humana. E, como comunidade da fé, liderança e membros devem abraçar esta causa e denunciar os atos de corrupção e desrespeito à vida.

A paz de um lar, no qual o pai, a mãe e os filhos desfrutam assentados à mesa, pode ser comparada à paz que deverá refletir no contexto da cidade que esta família mora (Sl 128). E a paz de uma cidade, associada aos demais municípios vão refletir sobre a saúde que o país proporciona aos seus cidadãos. Portanto, a saúde é o foco missionário de hoje: promover a shalom de Deus para o resgate da vida de todas as criaturas. Esta evangelização é tarefa primária da igreja do Senhor Jesus hoje.

Aqui na FTSA, o fazer teologia remete os docentes às propostas de construção dos fundamentos bíblicos, evangélicos e contextuais. A bíblia afirma que Deus criou todas as coisas para o louvor da sua glória (Ef 1:3-14), resultando na doutrina da mordomia (cuidado com a criação). Há uma forte ênfase nas disciplinas de teologia sistemática e de teologia bíblica sobre “salvação integral de toda a criação”. Na tradição protestante evangelical, defende-se os parâmetros de evangelização e responsabilidade social, em cujos contextos a ação diaconal é mais evidente, principalmente junto às pessoas carentes e menos favorecidas. E, por fim, os últimos dois anos têm comprovado como a igreja cristã entendeu contextualmente a pandemia da Covid19. No início, a apatia ficou bem forte pela própria liderança. Todavia, em menos de três meses as comunidades cristãs sensibilizaram-se pelo Espírito sobre o momento de angústia, desespero e finitude. Cada comunidade revisou o conceito de saúde e diaconalmente deu assistência às famílias carentes. Em solo brasileiro, a igreja  cristã vem praticando o sentido de Parakletos para Espírito, pois aprendeu a consolar e confortar os doentes – essa é a dinâmica da Shalom de Deus!

Ênio Caldeira Pinto
Mestre em Teologia pelo Western Theological Seminary (EUA), Professor na FTSA
enio@ftsa.edu.br